Snow Trail Camp: Muito mais que trail na neve

Um fim de semana repleto de experiências, sob o pretexto de treinar a corrida em ambiente de neve e montanha, foi a proposta de Armando Teixeira, reconhecido ultra-runner português, com a organização do 2.º Snow Trail Camp. Aceitámos o desafio e passámos dois dias de fevereiro na Serra da Estrela. 

Por Ana João

Choveu durante a noite. Agora, pelas nove horas da manhã, o sol espreita, fazendo jus ao provérbio que diz que não há sábado sem ele. Mesmo estando nós no pico do Inverno e no coração da Serra da Estrela. Mas o frio, esse, continua a fazer-se sentir e não irá embora tão depressa. Ainda há todo um fim-de-semana de sensações pela frente, até que se regresse a temperaturas um pouco mais altas e a altitudes mais baixas.

No dome instalado no Eco Resort do Vale do Rossim, 1 470 metros acima do nível do mar, a salamandra acesa acalenta os espíritos de cerca de 30 aventureiros reunidos para o 2.º Snow Trail Camp, organizado pelo ultra-runner Armando Teixeira, em parceria com a Trilhos e Lagoas, do anfitrião Júlio Barbas. Como o nome indica, trata-se de um campo de treino dirigido a atletas de trail realizado em ambiente de neve. E montanha, claro está.

Mas haveria de perceber rapidamente que este é mais do que um trail camp. É um encontro de amigos, um programa de família, em que ao desafio de uma serra coberta de branco se junta o conforto de caras conhecidas, seja da edição do ano anterior, seja de sempre.

Foto: Luciano Reis

“Estou aqui para dar uma coça ao meu pai.” Guilherme, 10 anos, o membro mais novo do grupo, trazido por um dos cabecilhas do camp, Miguel Catarino, apresenta-se ao resto do grupo “à campeão”. A sua prestação durante o fim-de-semana dar-lhe-ia legitimidade para isso. Mas já lá vamos…

Findas as apresentações individuais – entre aplausos e cumprimentos efusivos –, o grupo reúne-se à hora marcada para a fotografia, com a lagoa do Vale do Rossim como pano de fundo, para dar início ao primeiro trail do fim-de-semana. “Isto não é uma competição, é uma prova de entreajuda e de superação, de amizade e de respeito pela natureza”, lembra Armando Teixeira, pedindo sabiamente: “Aproveitem a beleza da serra.”

Com estas palavras na cabeça, protegida por um gorro, o sol – ah, o sol – a alumiar o rosto, as luvas calçadas e restante equipamento a rigor, lá vamos de abalada. Sempre a subir, não tardo a sentir a neve a entranhar-se-me nas sapatilhas. “Há que medir muito bem cada passo”, ouço de um dos companheiros, certamente mais habituado à montanha, aos seus trilhos e mariolas.

“Estamos a chegar à Nave da Mestra, um sítio mágico em plano maciço central da Serra da Estrela”, diz Miguel Catarino, quando o relógio marca o meio-dia. Eu acredito. Só posso confiar na sabedoria de quem há pouco me disse que “cair acontece, o importante é saber levantar”. Cai-se, levanta-se, caminha-se, corre-se (quando as pernas deixam), desliza-se sempre que surge um escorrega largo feito de neve. Aqui, voltamos a ter a simplicidade de uma criança. Mas também somos confrontados com a dureza das condições ambientais, que inospitamente convidam à superação. Por isso é que, durante a tarde, já percorridos os 15 agridoces quilómetros e requentados os estômagos e corpos, ouvimos Fernando Ferreira, tenente-coronel do Exército, falar de “motivação e determinação”.

Já antes desta palestra – em que foi sublinhado que “todos temos muito mais força do que aquilo que imaginamos” –, Armando Teixeira inspirara também o grupo, ao partilhar os seus momentos de resiliência, mesmo quando a motivação faltou e as lágrimas de exaustão chegaram a cair no rosto, durante a hercúlea prova Tor des Géants, nos Alpes italianos, em setembro passado. Foram 332,3 quilómetros com quase 25 mil metros de desnível positivo percorridos em 92h31m. “Aprendi muito”, conta-nos. Nós acreditamos – e reverenciamos o atleta e o homem.

Depois das palavras, a ação. Fernando Ferreira tinha lembrado há pouco o lema militar “instrução dura, combate fácil”. Depende da perspetiva se “fácil” será palavra adequada para caracterizar os cerca de oito quilómetros que galgámos até ao Sabugueiro, aldeia no concelho de Seia onde o restaurante do Sr. Martinho nos espera para jantar. Mas o verdadeiro “combate” haveria de chegar no dia seguinte.

Três pelotões, três percursos

O Domingo acorda bem cedo. Um grupo, de elite, propõe-se correr 37,7 quilómetros, com 1 800 metros de desnível positivo. Verdadeiros atletas, liderados por Armando Teixeira. Outro, composto por 17 “bravos” – como nos chama o timoneiro Miguel Catarino – decide percorrer 19 quilómetros, com cerca de 900 metros de desnível positivo. E outro grupo, mais pequeno, opta por fazer uma caminhada de 13 quilómetros.

Poderia descrever a experiência que foi integrar o segundo grupo – o contacto com a natureza no seu estado mais selvagem; o frio que gela as mãos não obstante as luvas calçadas; as lágrimas tímidas vertidas por uma companheira de aventura antes de chegar à meta; o exemplo do campeão Guilherme Catarino, que, mais do que “dar coça” ao pai, soube acompanhá-lo na dianteira; os momentos de desânimo, sempre abafados pelo espírito de amizade e de coesão – mas… não seria a mesma coisa. Nunca é. As palavras não chegam para partilhar o que se sente durante uma experiência destas.

Por isso, abra-se antes o apetite, cause-se vontade de ir e provar também.

Um merecido prato de vitela de cozedura lenta aguarda-nos, ao início da tarde, no restaurante do Vale do Rossim. Qual grande família num almoço domingueiro, comemos, brindamos, conversamos, rimos sonoramente. O espírito do trail também é isto, lemos nos olhos de Armando Teixeira e de todos os outros bravos. Na despedida, talvez o momento mais penoso de todos, fica a certeza de voltar.

Estrela Grande Trail entre 22 e 24 de maio 

Corolário dos Trail Camps organizados pela empresa Armando Teixeira Outdoor Events, acontece entre os dias 22 e 24 de Maio a primeira edição do Estrela Grande Trail, prova que irá percorrer a serra mais alta de Portugal continental e que promete transformar-se numa competição de renome além-fronteiras.

As inscrições estão abertas para duas provas: um ultra-trail de 85 km, com 11 mil metros de desnível acumulado; e um percurso de 24 km, com 1 500 metros de desnível positivo. Mais informações em estrelagrandetrail.pt


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