DarkateK: “Vejo a música eletrónica e de dança como um ritual xamânico”

Os sons e a música acompanham-no desde sempre, fazem parte de si. Nascido em 1980, em plena era de ouro do techno, Nuno Barreto aprendeu a mixar aos 16 anos e já tinha faixas acabadas quando decidiu, aos 24, ir para Inglaterra. Aí cresceu como DJ e artista, onde enveredou pelas vertentes do techno, house, breakbeat, electro, acid, etc. Como DarkateK, lançou o seu primeiro EP em 2011, com Tony Montana, pela label Naked Lunch, e também participou em compilações das gravadoras Ovelha Trax e Elberec. A 23 de maio, lança o segundo EP a solo, pela T1 Music: “Start Again”. 

Nuno Barreto, DarkateK desde o início da vida adulta, recebe-nos com despretensiosa simpatia no seu estúdio, em casa, na Mouraria, em Lisboa, no rescaldo de mais um live act, no Centro Cultural Carpintarias de São Lázaro. Centenas de discos de vinil e até uma nuvem espumosa forram o espaço, que parece a cabine de uma nave intergaláctica, numa viagem entre dois mundos tão paralelos como complementares: o silêncio e a música. Nessa tarde haveria de partilhar, alto e bom som, os seus dotes de mistura, o beat que o faz vibrar. Por agora põe a tocar o electropop suave de Lali Puna ‒ garantindo, no decibel certo, o flow harmonioso desta entrevista.

Nasceste há 42 anos, em Lisboa. Quando descobriste a paixão pela música?

Desde criança, desde bebé, que brinco com instrumentos. Cresci rodeado de discos, com piano em casa, e desde pequenino que tenho sintetizadores, gira-discos e coisas que fazem sons. Sempre ouvi música mais complexa, por causa do meu pai, que era um prodigiozinho do piano. Acho que isso ajudou a ganhar bom ouvido e alguma aptidão para a música. Comecei a tocar piano com nove anos, depois passei para a guitarra aos 12, pelos 13-14 experimentei percussão. Tive bandas com amigos, aprendi a tocar bateria, baixo também… Fazíamos bué covers.

Faço música desde miúdo, quando comecei a brincar com programas de software. Depois, também pelos 13-14, os discos e a música de dança e eletrónica…

Quais foram as tuas influências?

Tive uma infância um bocado obscura e revoltada, e identificava-me bastante com música mais agressiva e dark, tipo Pantera, Sepultura, Alice in Chains… Sempre me identifiquei bastante com coisas introspetivas e pesadas, deprimentes. Apesar de ter ouvido coisas uplifting e upbeat, como reggae, ska, punk, Millencolin… Porque também faço bodyboard desde miúdo e era a música da surfada. Depois, em casa, como tocava guitarra, eram cenas mais metal e grunge. Guns N’ Roses, Nirvana, Ministry… Passei por toda uma fase de punk rock, metal, industrial…

Mas ouvia tudo e mais alguma coisa. Sixtiesseventies, ainda muito miúdo… e obviamente os eighties todos: Blondie, Abba, Michael Jackson, Technotronic… Todos aqueles primeiros videoclips, toda essa música foi uma influência. De resto, toda a cena eletrónica do meio e final dos anos 90, mais comercial e mainstreamI suppose: Prodigy, Chemical Brothers, Underworld, obviamente Fat Boy Slim… Mas também trance bem antigo, antes do Goa trance, coisas mais acid e eurotrance. Coisas assim mais estranhas…

Gosto de ouvir muita coisa diferente. Curto imenso jazz… Há uma lista gigante de artistas que curto. Aphex Twins… tudo e mais alguma coisa! Obviamente tenho mil influências, desde as coisas mais incríveis de genialidade e fora da caixa às coisas mais simples mas super eficazes, pela harmonia e sensação que criam. Nem toda a música tem que ser complicada.

O teu estilo abarca predominantemente o techno, o house, o breakbeat, o electro… Quando é que percebeste que eram essas sonoridades que mais querias explorar?

Depois de começar a ir às discotecas cá em Lisboa, ao Alcântara-Mar, onde ia religiosamente sexta e sábado, e de me aperceber do hipnotismo, da viagem que se consegue fazer através do house e do techno, fiquei com o bichinho de querer poder providenciar isso também. Essa energia que se cria no dancefloor, aqueles momentos de êxtase, de euforia, de sincronia e união, aquela sensação de não haver tempo nem espaço, atraíram-me imenso. Adorava essa sensação, o conseguir manter o beat sempre seguido e levar as pessoas numa viagem pela música de dança. Então, depois de ouvir o Luis Leite e outros DJs que lá tocavam, decidi começar a comprar discos. Comprei vários CDs mas a maior parte da música que saía era tudo em vinil… O meu pai já tinha um gira-discos em casa com pitch, mas comprei um a um amigo em segunda mão, um SL-BD22, de plástico. Super arcaico, mas também tinha pitch, já dava para fazer qualquer coisa. Então comecei a aprender a mixar, com 16 anos.

Nessa altura, deixei a escola e estive um ano em stand-by, passei o tempo todo em casa a mixar, com esse amigo. A partir daí nunca mais parei de mixar, comprar discos, ouvir e fazer música… Tocar em festas, fazer festas. Lembro-me perfeitamente da primeira festa que fiz, que toquei assim para uma malta. Foi na Bobadela, tinha 16 ou 17 anos.

Foi aí que nasceu o DarkateK?

Nessa altura ainda era o Poflin, mas o Darkatek é desde miúdo, sim, com 18, 19, 20 anos. Sempre curti o Star Wars, a cena das forças, e acho que a música mais obscura e agressiva, tecnho mesmo dark, que te leva para sítios estranhos, é como uma boa dose de psicadelia. Entras naquele estado quase hipnótico e ajuda-te a descarregar energias negativas no dancefloor. Consegues meditar, limpar um bocado. Acho que é isso, o techno é um bocado meditação. Vejo assim a música eletrónica e de dança, como um ritual xamânico. Antigos rituais que ainda hoje se fazem, em que as tribos se juntam à volta da fogueira e estão em tripe, com os tambores, durante horas. A música é fundamental, ajuda-nos a processar as coisas. E dançar faz bem.

Terminaste a tua primeira faixa com 20 anos…

Sim, até aí tinha muitas quase acabadas, mas nunca tinha considerado mesmo ok. A primeira que considerei feita foi depois de ter feito o curso na ETIC, em Music Technology, pois fiquei com mais noção de como misturar uma música e usar os softwares, e a partir desse ano comecei a fazer música, até agora. Infelizmente, perdi praticamente tudo o que fiz entre 2000 e 2011, pois tinha tudo só num disco rígido, que caiu em funcionamento… Consegui recuperar apenas sete ou oito faixas, que por acaso tinha num CD.

Viveste em Lisboa até 2004. Em janeiro de 2005 foste para Inglaterra, Brighton.

Sim, até 2004 ainda me juntei aqui um bocado à cena de Lisboa, conhecia a malta toda que organizava festas e ainda toquei várias vezes nuns eventos porreiros, mas senti que isto era demasiado pequeno e que havia demasiado lobby… E além disso fazer dinheiro aqui era difícil… Passado um ano de ter estado a viver sozinho (queria poder fazer música sem ter que me preocupar com o barulho), percebi que era insustentável. Nem um MIDI keyboard pude comprar! E lá fui para Inglaterra… Desde os 16 ou 17 anos que tinha pensado ir para Brighton, incentivado por um amigo, mais velho, que lá vivia, e também por outros amigos, pelas revistas, etc. Sabia que Brighton tinha uma cena de música eletrónica muito fixe na altura.

Como é que foi a chegada a esse mundo novo? Imagino que te tenha aberto os horizontes.

Absolutamente. Cá, em termos de música, já havia muita coisa, e sempre estivemos bastante on top, mas a minha influência principal sem dúvida que é inglesa, em termos de nacionalidades. Sempre curti imenso música feita em Inglaterra, desde miúdo mesmo.

Arranjei logo trabalho numa discoteca e fui-me ajustando à cena onde queria estar. Comecei a envolver-me e a trabalhar com os promotores que faziam as festas de que gostava, com o tipo de música de que gostava, e pronto, fartámo-nos de fazer eventos… Lá juntei umas cruzes e continuei a fazer música. Comprei placa de som, teclado midi, tudo o que precisava e queria comprar e cá não conseguia. Também fiz outro curso de Music Technology, no Northbrook College, e trabalhei numa loja de discos. Aprendi imenso porque conheci muita gente absolutamente genial. Praticamente logo quando lá cheguei, morei com o Alex Downey, que é dos melhores DJs do mundo. Tinha três mil discos ou mais, uma coleção incrível, três pratos, uma mixer bué da boa… Deixava-me usar as cenas dele; e no outro quarto, tinha um gajo com uma bateria acústica! A cena em Brighton fluía, magia mesmo… Estive lá oito anos, foi non stop. Tocava nas festas que organizava, tocava nas festas dos meus amigos, dos espanhóis, dos polacos, dos ingleses… Obviamente dentro dos estilos que toco, pois não sou um DJ de drum and bass nem de trance.

Como é que defines o teu estilo?

Não sou muito de modas, mas a música também vai evoluindo e vão aparecendo coisas novas e diferentes. O período em Brighton, entre 2005 e 2013, apanhou muito uma parte de progressivo, depois minimal, breakbeats, techno, electro, um bocadinho de acid. Mas não diria que sou um DJ de techno ou de house, de electro, breakbeat ou de acid. Sou um DJ polivalente, que gosta de quase todos os estilos e de misturar um bocadinho de tudo, e se possível numa hora meter dez estilos diferentes. desde que faça sentido e que não perca o balanço e o flow.

Com a experiência que tenho, e tendo passado por todos os estilos de música que passei, tenho bagagem e um espectro largo o suficiente para me poder encaixar, dependendo da hora e da festa.

Algum ou alguns momentos que recordes como pontos-altos do teu percurso?

Tenho vários, mas assim no top 3 da minha carreira como DJ ‒ porque na verdade só recentemente é que tenho estado a tocar a minha própria música ‒ para mim estão: a festa de aniversário do Tó Ricciardi, um dinossauro da nossa cena eletrónica, no Panorâmico de Monsanto, em 2004 ‒ ter tocado depois dele e ver o nascer do sol naquele spot incrível sem dúvida está bem vincado na minha memória; outro momento especial foi o meu gig mais internacional, na Foz do Iguaçu, em 2007; e o terceiro foi um gig de mais de 14 horas, a fechar um festival em Inglaterra, em 2008 (que na verdade foi a junção de dois festivais, o The Big Chill com outro, que tinha sido cancelado, devido à chuva). Foi incrível porque já não havia música em mais nenhum stage do festival, mas ainda estava imensa gente. A tenda estava a abarrotar e lá fora mais de duas mil pessoas… Foi bastante memorável.

Os anos de 2007 e 2008 foram dos melhores da minha carreira, fartei-me de tocar em festivais em Inglaterra… No Glastonbury, no Shambala… Tive gigs incríveis. E em cada fim de semana no verão estava num festival diferente. Não tocava em todos, mas ia com o soundsystem, que acabei por comprar.

Saíste de Inglaterra em 2011. Porquê?

A cena em Brighton começou a morrer um bocado, as pessoas também começaram a separar-se e muita gente também bazou. E achei que já não estava a ser produtivo o suficiente, que estava a entrar num loop aborrecido e que tinha coisas para resolver cá em Portugal. Então voltei em 2011. Mas não funcionou, e em março fui para Ibiza. Estive lá uns meses mas voltei de emergência, porque tive um problema de saúde. Como cá não conseguia o tratamento tive que voltar para Inglaterra, em outubro, novembro de 2011. Fiquei lá todo o ano de 2012 e depois em 2013 fui viajar para a América do Sul um ano. E entre 2014 e 2015 estive entre Ibiza e as Canárias.

Regressaste a Portugal em dezembro de 2015. Como têm sido estes últimos anos?

Sim, quando voltei comecei a trabalhar, a juntar algum dinheiro. Slowly but surely fui construindo o meu set up, o estúdio que sempre quis ter. E comecei a produzir outra vez música, sobretudo a partir de 2020, porque até então estava numa relação e não me dedicava tanto às minhas coisas. Mas quando fiquei com o tempo todo para mim, agarrei-me ao estúdio com força. Foi também um bocado catarse.

Mais recentemente nasceu o NooN. É uma versão mais solar de ti?

Sim, o NooN foi agora, há pouquíssimo tempo, porque obviamente não faço só música pesada e obscura, também faço coisas mais upbeat e happy. Gosto de pensar que emano bastante luz e energia, que sou um happiness provider. E achei que juntar tudo no DarkateK ia deixar as pessoas confusas. Criar um alias acabou por ser mais fácil, pois são duas identidades, ou personalidades, diferentes. O meu espectro é enorme, e tanto faço música super simples mas agradável, pelo menos para mim, como tento fazer coisas complicadas ou estranhas, mais difíceis de encaixar. Gosto do desafio.

Como é o teu processo criativo?

Sai-me puramente do feeling. Quando ligo as máquinas, nunca sei que música vou fazer. Apesar de que o contrário é um bom exercício… Às vezes vai para o acid, às vezes para o breakbeat, às vezes para o electro, para o techno, para o house. Às vezes nem há estilo, é uma cena minha.

Recentemente tens apresentado o teu live act [como DarkateK] em alguns espaços de Lisboa. Quais os objetivos para os próximos tempos?

O meu objetivo agora é arranjar mais uns gigs como DJ e lives, e a ver se consigo assinar por uma label fixe e começar a fazer umas tours como deve ser, around the world… Sei fazer muita coisa, mas o que gosto mesmo e me dá prazer é a música. Acho que tenho algum talento e há mais de 20 anos que tenho desenvolvido a minha arte, tenho aprendido e crescido musicalmente… Agora vou fazer o quê? Voltar para trás? [risos]

A minha intenção é contribuir para a felicidade dos outros, e a música é uma maneira de chegar a muita gente. Por isso é que comprei um PA [soundsystem], porque é uma maneira de fazer a malta feliz… Não quero ser milionário, quero fazer milhões de pessoas felizes.

DarkateK

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Foto: Francisco Branquinho


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