Urina: veneno ou antídoto?

Ao longo da história da Humanidade, a urina tem desempenhado um papel fundamental na identificação de doenças, e já os egípcios a usavam para diagnosticar a gravidez. Mas as potencialidades na saúde vão mais além, e a sua aplicação tópica e ingestão são até práticas milenares que perduram aos dias de hoje. Viagem sem pudores aos meandros da urinoterapia.

Os rins de um feto humano começam a funcionar na 16.ª semana de gestação e, a partir daí, cerca de 80-90% do líquido amniótico – ingerido pelo bebé e reciclado continuamente – é composto por urina. A urina fetal é constituída por cerca de 98-99% de água, já a produzida por um adulto tem cerca de 95-98%, variando de acordo com a hidratação do corpo, a dieta e a saúde geral. No geral, trata-se de “um líquido estéril, composto por 95% de água e 5% de resíduos, como ureia, creatinina, sódio, potássio, cloro e magnésio”, afirma o urologista francês Stephane Chassagne, no documentário Could urine make our daily life better?, de 2023. 

Natalia Perera, formada em Medicina Ayurveda e especialista em Psicoterapia do Yoga, no artigo “Shivambu Shastra: Mother of Ayurvedic Medicine”, defende que “a urina não é uma substância suja e tóxica rejeitada pelo corpo; é um subproduto da filtragem do sangue feita pelos rins. Medicamente, é chamada de ultrafiltrado plasmático”. 

De composição única em cada indivíduo, estima-se que tenha cerca de 3 mil compostos bioquímicos, mas apenas cerca de 200 foram estudados. Considerada um resíduo no Ocidente, tem sido historicamente encarada em algumas tradições e culturas como tendo propriedades terapêuticas. “Era referida como o ouro do sangue e o elixir da longa vida”, nota um artigo de investigadores do Departamento de Nefrologia da Universidade de Messina, Itália, publicado em 2011, considerando “registos que vão dos egípcios aos judeus, gregos, romanos e do período da Idade Média e do Renascimento” que “testemunham a prática da urinoterapia”.

Alguns ramos da Medicina Ayurveda e da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) têm uma longa história desta prática, seja mediante aplicação externa, em ferimentos e problemas de pele, seja até por auto-ingestão. A ciência ocidental não reconhece benefícios – e a MTC e o Ayurveda contemporâneos também não promovem amplamente essa prática controversa –, mas em 1996 e 1999 decorreram duas conferências mundiais sobre urinoterapia, uma na Índia e outra na Alemanha. 

De resto, vários são os fármacos produzidos a partir desse fluido corporal. Nomeamos alguns:

  • Uroquinase – Enzima originalmente extraída da urina humana (hoje em dia, produzida por biotecnologia), usada para dissolver coágulos sanguíneos (efeito trombolítico); 
  • Menopur (menotropina) – Medicamento usado para tratar infertilidade, contém hormonas derivadas da urina de mulheres na menopausa;
  • Premarin – Terapia de reposição hormonal feita a partir de estrogénios extraídos da urina de éguas prenhes (não disponível em Portugal);
  • Eritropoetina (EPO) – Hormona que estimula a produção de glóbulos vermelhos, originalmente isolada da urina (hoje produzida por engenharia genética).

A urina tem também sido usada em algumas preparações homeopáticas, embora tal seja pouco reconhecido. Já a ureia, o principal sólido orgânico encontrado no líquido, é um agente medicinal aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), usado para diversas condições e amplamente utilizado em cosméticos, como cremes hidratantes, champôs e outros produtos de cuidado pessoal. “Provou ser um agente antibacteriano e antiviral extraordinariamente eficaz, um dos melhores diuréticos naturais e um dos mais notáveis ​​hidratantes para a pele”, escreve Natalia Perera.

Panorama na China 

Recentemente, um grupo de cientistas da Academia Chinesa de Ciências publicou e patenteou uma forma revolucionária de criar células-estaminais a partir da urina humana. Esta intervém numa grande variedade de terapias na China. Estimativas de 2012 apontavam que cerca de 10 milhões de chineses bebiam a própria urina todas as manhãs como forma de manter a saúde, especialmente nas províncias de Liaoning, Cantão e Shaanxi. 

O presidente da Associação Chinesa de Terapia de Urina, Ximin Du, refere no documentário de 2023 da SLICE que “o principal interesse em relação à urina para a longevidade é que há substâncias nela, como a uroquinase, que podem amolecer os vasos sanguíneos e aumentar a circulação”.

Assegura o documentário que a urina de crianças é especialmente valorizada, havendo até anúncios online, com esse fluido a poder custar até várias centenas de euros por copo. Na cidade de Dongyang, perto de Xangai, existe a tradição sazonal de usar urina de crianças para ferver ovos, que se diz ajudarem a proteger do calor intenso do verão, a evitar doenças e auxiliar na cicatrização. 

“Do ponto de vista da medicina ocidental, pode ajudar a matar as microbactérias da tuberculose e aumentar a microcirculação”, refere a terapeuta de Medicina Chinesa e alopática Wu Yunhua. ”Nem toda a gente pode comer esses ovos cozidos: pessoas que têm problemas com o paladar, dores nas articulações e com alto nível de ácido úrico não devem comê-los”. 

Panorama ocidental

Martin J. Lara é autor do livro Uropathy: The Most Powerful Holistic Therapy e promove ativamente a terapia com urina há mais de 20 anos. “Bebo um copo todas as manhãs por causa dos benefícios que conheço que o meu corpo pode obter”, afirma, no documentário Could urine make our daily life better?. Para este defensor da urinoterapia, também autor do livro Salt Deficiency: The Cause of All Serious Diseases, “o nosso bloqueio em relação a isso é, essencialmente, cultural; em algumas culturas, promovem a troca de urina entre marido e mulher, pois acreditam que isso ajuda a equilibrar o yin e o yang”.

“A primeira coisa que é preciso fazer é hidratar-se corretamente”, observa. “A maioria das pessoas não tem uma urina agradável porque são cronicamente desidratadas e forçam o corpo a extrair humidade do cólon, o que resulta numa urina de gosto horrível. Se ela cheira mal ou parece ruim, é um sinal de que é preciso beber mais água.” 

Notando que “alguns macacos bebem urina o tempo todo, porque isso está geneticamente implantado como uma ferramenta de sobrevivência”, Martin Lara defende ainda que a aplicação tópica tem benefícios para a pele. Apesar de controverso, o autor dominicano imigrado nos Estados Unidos em 1973 não é o único no Ocidente a advogar a urina como terapia. Personalidades como o médico Edward F. Group III (responsável pela plataforma Urinetherapy.com), o coach de saúde holística Troy Casey e vários atletas têm admitido consumir a própria urina. 

“Tenho praticado há 20 anos”, afirmou Casey, ex-modelo da Versace, numa entrevista em 2024. “Ouvi falar desta técnica de Yoga, tentei e realmente gostei. Energeticamente, é como uma dose homeopática do que há de errado com o corpo. O corpo é um biocomputador inteligente e eu percebo que meu corpo se corrige, é assim que sinto que funciona por dentro.”

Shivambu Shastra

Chamada Shivambu Shastra na Medicina Ayurveda ou Amaroli no Yoga, a terapia de auto-urina é descrita no Damar Tantra, documento sânscrito com cerca de 5 mil anos. “É, antes de tudo, uma prática espiritual”, de “expansão da consciência”, escreve Natalia Perera. “Há algo esotérico sobre a urina. Como um subproduto do sangue, ela contém força vital ou prana e, portanto, é considerada um alimento vivo”, com a “capacidade de afetar todos os níveis do ser”.

“Em termos científicos, pode-se considerar a autoterapia com urina como uma extensão dos métodos de Jenner e Pasteur, como autoinoculação ou autovacinação“, defende a psicoterapeuta do Yoga no artigo “Shivambu Shastra: Mother of Ayurvedic Medicine”. “Certas substâncias corporais que foram removidas do corpo, algumas das quais podem ter sido produzidas como resultado de um desequilíbrio, são reintroduzidas em pequenas quantidades, reabsorvidas no sangue através dos intestinos ou da pele. Isso dá ao sistema imunológico todas as informações de que precisa e a oportunidade de responder adequadamente para atingir a homeostase.” 

Notem @s leitor@s que não defendemos qualquer prática de urinoterapia, apenas exploramos um pouco este tema controverso, que tem, como sabemos, direito a um contraditório abundante. Não existem estudos clínicos robustos que comprovem benefícios diretos da ingestão de urina para a saúde. Além disso, “é possível que esteja infetada com bactérias e talvez vírus, e isso pode ser perigoso – é biologicamente ilógico e também perigoso”, observou, por exemplo, Robert Farnsworth, um dos principais urologistas australianos, em entrevista. Há também teses que defendem que a ingestão de urina pode sobrecarregar os rins, entre outros malefícios. A urinoterapia é geralmente considerada uma pseudociência e não é recomendada por autoridades de saúde, como a Organização Mundial da Saúde e o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos.

Diagnóstico pela urina

Independentemente de ser considerada resíduo ou elixir, vale a pena lembrar a urina como um indicador importante de saúde. “É normal que a primeira da manhã seja de cor carregada, sobretudo se durante a noite não nos levantarmos para urinar. Se a cor for o amarelo-claro revela um estado normal. Se branca, indica fraqueza; se amarela, inflamação. Um tom escuro indica toxinas e venenos”, nota a especialista em Medicina Chinesa Manuela Soares.

“A presença de sangue aponta para inflamação da bexiga, problemas dos rins ou da próstata, nos homens; pode significar também presença de vírus. Urina espumosa é frequente, pode ser sinal de presença de proteínas na urina e pode indicar problemas nos rins ou pressão alta não tratada.”

Esse líquido corporal é um espelho do que vai no organismo! Uma boa hidratação e alimentação saudável são fundamentais para a saúde.


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