No Dia de Finados, revisitamos uma entrevista* com a antropóloga Clara Saraiva, investigadora e docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sobre a evolução da morte e dos rituais fúnebres na sociedade portuguesa. Considerando que vivemos numa “época paradoxal”, a especialista observa uma convivência “próxima” com a morte – através da exposição mediática – e, ao mesmo tempo, “longínqua”.
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Como é que a sociedade portuguesa encara a morte?
Apesar de as diferenças entre o mundo rural e mundo urbano se terem esbatido muito, ainda há algumas distinções no modo de lidar com a morte. Fiz um trabalho de investigação na década de 1990 por todo o país e, em zonas rurais, mais isoladas, como Trás-os-Montes, Minho ou Beira Alta, a morte ainda era um assunto muito familiar, da comunidade. Não eram os agentes funerários, mas as pessoas da comunidade que tratavam do defunto. O facto de estarem mais habituadas a lidar com a morte fazia com que fosse um assunto menos tabu. Claro que quando esta ligação com a comunidade se esbate, as pessoas também se afastam mais da questão da morte. É este o modelo clássico ocidental no século XX: um progressivo afastamento do convívio com a morte, mais ligado apenas aos profissionais do setor. Vivemos numa sociedade em que a esperança média de vida é mais elevada, os mais velhos vão para os asilos ou para os hospitais e a morte passa a ser algo mais afastado das pessoas.
Esse afastamento denota que se trata, de algum modo, de um tema tabu na sociedade?
Não sei se diria que em Portugal a morte é um tema tabu. Acho que não é uma característica só portuguesa, mas do mundo ocidental. As pessoas não convivem, tentam não conviver com a morte e não pensar nisso no dia-a-dia. Por exemplo, atualmente não se veem os sinais de luto – o clássico vestir-se de negro – como se viam há 50 ou 70 anos. Esses sinais foram apagados. Há uma pressão grande para que as pessoas ultrapassem o luto e voltem ao que acham ser a vida normal.
Por outro lado, a morte em geral está muito mais próxima de nós, com os meios que temos à disposição, como os media, a Internet, etc. Mas é uma morte próxima e longínqua ao mesmo tempo. Quando vemos imagens de guerra, das crianças que morrem, refugiados no Mediterrâneo, é horrível e choca-nos a todos, mas é algo que está nos media, não ao nosso lado. Vivemos numa época um bocado paradoxal, que consiste, por um lado, no convívio com essas mortes terríveis, violentas e bastante sensacionalistas trazidas pelos media todos os dias para nossa casa, e ao mesmo tempo tentamos não conviver com a morte – a nossa e do vizinho.
Atualmente não se veem os sinais de luto – o clássico vestir-se de negro – como se viam há 50 ou 70 anos. Esses sinais foram apagados. Há uma pressão grande para que as pessoas ultrapassem o luto e voltem ao que acham ser a vida normal.
Não obstante, em Portugal e noutros países ocidentais, tem-se criado alguma investigação sobre a morte e existem algumas organizações especializadas no apoio ao luto…
Sim, é verdade. Do ponto de vista académico, no mundo ocidental, a morte é mais estudada agora do que há 30 anos. E tem havido noutros países (por exemplo, em Inglaterra) muitos movimentos sociais que pugnam por um relacionamento mais próximo e ecológico com a morte, no sentido de ser celebrada em comum, porque é algo que faz parte da vida e é saudável para as pessoas conviverem com ela. Em Portugal, há algumas associações que prestam apoio a pessoas que passam pela morte de entes queridos, mas não há propriamente um movimento civil para promover um retorno a uma convivência maior com a morte.
Do ponto de vista turístico, a visita a cemitérios e espaços ligados à morte tem crescido em Portugal. Isso demonstra um interesse crescente, a nível histórico e cultural, pelo tema?
Creio que sim. Esse movimento não começou em Portugal, começou em França, Inglaterra e noutros países que têm cemitérios considerados historicamente interessantes. O de Père-Lachaise, em Paris, é sem dúvida em exemplo clássico; há décadas que se fazem visitas a esse cemitério, que tem muitas celebridades lá enterradas. Ou o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. Em Portugal, os dois cemitérios mais visitados são o dos Prazeres e o do Alto de São João. Existem algumas entidades a explorar essa vertente turística e acho que é benéfico aprender mais sobre aquilo a que se chama a Cidade dos Mortos. Afinal, como tratamos os mortos reflete o modo como tratamos os vivos.
A taxa de cremação tem crescido nos últimos anos, as carpideiras [profissionais femininas cuja função consiste em chorar por um defunto alheio] é um fenómeno que deixou de existir… Em que medida os rituais fúnebres estão a mudar?
As coisas sempre mudaram, mas realmente, desde os séculos XVII e XVIII, assistimos a uma época em que tudo muda mais rapidamente, em termos históricos e sociais. A taxa de cremação tem subido imenso e creio que vai continuar a subir. Quando liderei essa investigação grande na década de 1990, a cremação em Portugal era algo meramente de elites, intelectuais, de esquerda, ateístas, etc. Hoje em dia não, há imensos católicos praticantes e uma grande variedade de indivíduos a preferir a cremação. Há vários fenómenos ligados a esse aspeto: por um lado, o facto de as pessoas sentirem que não querem dar trabalho aos mais jovens, obrigar os outros a tratar da sepultura. Por outro, uma preocupação com as questões ecológicas (no cemitério ocupa-se espaço, se calhar vital para os vivos), bem como o facto de se encontrar algum sentido em fazer um funeral que tenha uma certa comunhão com a natureza, que seja uma cerimónia mais intimista, em que as pessoas deitam as cinzas do ente querido no mar, no campo, nos próprios jardins. Esse fenómeno está a crescer em Portugal.
Se a gestão da morte é difícil para os nacionais, mais difícil se torna para os imigrantes. O repatriamento de corpos não é um processo fácil. Há comunidades que preferem expatriar, outras não, mas em todas há uma ligação ao local de origem do defunto. A duplicação de cerimónias acontece em muitas comunidades.
Entre 2009 e 2013, dirigiu o projeto “A invisibilidade da morte entre as populações imigrantes em Portugal”, promovido pela Fundação para a Ciências e Tecnologia. Quais as principais conclusões a que chegaram?
Nesse estudo, não estavam todas as comunidades de imigrantes abrangidas, escolhemos grupos mais maioritários dentro das minorias: a comunidade brasileira, cabo-verdiana, do Bangladesh, a comunidade chinesa, guineense, etc. As conclusões não foram muito diferentes do que tínhamos pensado à partida: se a gestão da morte é difícil para os nacionais, mais difícil se torna para os imigrantes. O repatriamento de corpos não é um processo fácil. Há comunidades que preferem expatriar, outras não, mas em todas há uma ligação ao local de origem do defunto. Na Guiné-Bissau, por exemplo, se a pessoa morre cá, deve ser sepultada cá, mas faz-se sempre uma cerimónia fúnebre na Guiné. Essa duplicação de cerimónias acontece em muitas comunidades.
Um assunto importante para a gestão da morte é se se trata de uma “boa” ou “má” morte. E quando estamos a falar de imigrantes e diferenças culturais e religiosas muito grandes, torna-se mais complicado fazer o acompanhamento dos moribundos e dos processos hospitalares. Se as pessoas sentem que estão num país que não é o seu, sentem-se mais sós quando a morte ocorre.
Foto de Celestino Santos
* Entrevista originalmente publicada em 2018.
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