Assinala-se hoje, 25 de setembro, o Dia Mundial do Sonho. Esses fragmentos de imagens, sons e sensações que nos visitam durante o sono há muito intrigam a humanidade. Mais do que meras projeções mentais, exercem por vezes um impacto profundo sobre a vida de indivíduos e o curso da História. Enquanto a ciência tenta desmistificar o que ocorre no cérebro durante o sono, a interpretação psicológica e as abordagens espirituais oferecem insights valiosos sobre o significado mais profundo dos sonhos.
Exemplos de figuras históricas cujos sonhos influenciaram as suas decisões e vidas são abundantes e fascinantes, ilustrando como o mundo onírico pode ser um portal para o inesperado e, por vezes, para o transformador. Um dos casos mais notáveis é o do 16.º presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865). Segundo Ward Hill Lamon, seu amigo e guarda-costas, dias antes do seu assassinato, Lincoln partilhou com a sua esposa e alguns amigos um sonho perturbador. Relatou que estava na Casa Branca e ouviu soluços de luto; ao entrar no Salão Leste, encontrou um caixão cercado por soldados em guarda. Quando perguntou quem havia morrido, um dos soldados respondeu: “O presidente. Ele foi assassinado.”
Esse sonho premonitório deixou Lincoln inquieto, mas continuou com a sua vida normal, acreditando que tinha sido apenas um pesadelo. No entanto, poucos dias depois, foi assassinado enquanto assistia a uma peça no Teatro Ford. Esse episódio tornou-se um dos sonhos mais conhecidos e discutidos da História, levantando questões sobre o poder premonitório dos sonhos e a sua conexão com o destino.
Um exemplo mais recente de um sonho que influenciou a vida de uma personalidade é o de Paul McCartney (n. 1942), membro dos Beatles. Em 1965, McCartney sonhou com uma melodia que não conseguia tirar da cabeça ao acordar. Ele imediatamente correu ao piano para tocá-la e perguntou-se se havia “roubado” a melodia de algum outro músico. Após confirmar que era original, desenvolveu a música, que se tornou a famosa canção “Yesterday“, um dos maiores sucessos dos Beatles e uma das canções mais gravadas de todos os tempos. Este exemplo demonstra como os sonhos podem ser uma poderosa fonte de criatividade e inspiração, alimentando a produção artística de maneiras inesperadas e profundas.
Outro exemplo icónico vem do filósofo francês René Descartes (1596-1650), cujos sonhos desempenharam um papel crucial na formação da sua filosofia. Em 10 de novembro de 1619, Descartes teve uma série de três sonhos numa única noite que, segundo ele, foram enviados por um “espírito divino” e marcaram o início da sua missão filosófica. No primeiro sonho, ele estava a ser empurrado por um vento forte enquanto caminhava na rua, o que interpretou como uma metáfora para a confusão na sua busca por conhecimento. No segundo, ouviu um trovão, e no terceiro, sonhou com livros que continham a essência da sabedoria humana.
Esses sonhos levaram Descartes a formular sua famosa máxima “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”), que se tornou a base do racionalismo moderno. Acreditando que esses sonhos revelaram a estrutura do pensamento humano, Descartes iniciou a sua jornada para desvendar os mistérios da mente e do conhecimento.
Os relatos de Lincoln, McCartney e Descartes ilustram como os sonhos podem ser interpretados como janelas para o inconsciente, e a ciência moderna também tem muito a dizer sobre eles. A Neurociência e a Psicologia oferecem explicações que, não excluindo as interpretações mais místicas ou filosóficas, acrescentam uma compreensão mais fundamentada do que acontece nas nossas mentes enquanto dormimos.
Neurociência e a Teoria da Ativação-Síntese
Uma das principais teorias científicas sobre os sonhos é a Teoria da Ativação-Síntese, proposta pelos neurocientistas J. Allan Hobson e Robert McCarley na década de 1970. Segundo essa teoria, os sonhos são o resultado de impulsos elétricos aleatórios no cérebro que ocorrem durante o sono REM (Movimento Rápido dos Olhos). Esses impulsos ativam várias partes do cérebro, incluindo aquelas responsáveis pelas emoções, perceções e memórias. O cérebro, então, tenta fazer sentido dessas ativações aleatórias, construindo uma narrativa a partir delas, o que resulta no que percebemos como sonhos.
Essa teoria sugere que os sonhos não são necessariamente proféticos ou simbólicos, mas sim uma tentativa do cérebro de interpretar sinais caóticos. No entanto, essa interpretação não diminui a importância dos sonhos. Mesmo sendo “sintetizados” a partir de dados aleatórios, podem refletir os nossos medos, desejos e preocupações, oferecendo uma janela para o que está oculto no inconsciente.
Freud e a interpretação dos sonhos
Antes do advento da neurociência, foi Sigmund Freud (1856-1939) quem propôs uma das teorias mais influentes sobre os sonhos. No seu livro A Interpretação dos Sonhos (1899), Freud argumentou que os sonhos são uma forma de realização de desejos reprimidos. Para ele, o conteúdo manifesto de um sonho era uma representação simbólica do conteúdo latente (os desejos e pensamentos reprimidos). Por exemplo, sonhar com a morte de uma figura de autoridade poderia refletir desejos inconscientes de liberdade ou poder.
Freud via os sonhos como a “via régia para o inconsciente”, uma oportunidade para acessar partes da mente que estão fora do alcance da consciência durante a vigília. Mesmo que as suas teorias tenham sido amplamente debatidas e, em muitos casos, contestadas, a ideia de que os sonhos têm significados ocultos e que podem revelar aspetos profundos da psique humana continua a ser uma perspetiva influente na Psicologia.
Carl Jung e os arquétipos
Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo e depois dissidente de Freud, ofereceu outra perspetiva influente sobre os sonhos. Jung discordava de Freud sobre a origem e a natureza dos sonhos, acreditando que eles não eram apenas uma manifestação de desejos reprimidos, mas sim uma expressão do inconsciente coletivo. Ele propôs que os sonhos contêm símbolos universais ou “arquétipos” que são compartilhados por toda a humanidade, independentemente da cultura ou época.
Jung via os sonhos como uma ferramenta para o autoconhecimento, um meio de comunicar mensagens importantes sobre o crescimento e desenvolvimento pessoal. Ao contrário de Freud, que via o inconsciente como um reservatório de impulsos reprimidos, Jung acreditava que o inconsciente tinha um papel vital na realização do potencial humano. Para Jung, sonhar era uma maneira de explorar o que ele chamava de processo de individuação – a jornada para se tornar na pessoa completa que se é destinada a ser.
Entre o místico e o sagrado
Além das explicações científicas e psicológicas, os sonhos também têm um lugar de destaque na espiritualidade e nas tradições religiosas. Muitas culturas e religiões veem os sonhos como uma forma de comunicação divina ou como um meio de receber orientação espiritual.
No Cristianismo, os sonhos são frequentemente mencionados na Bíblia como um meio de Deus se comunicar com os seres humanos. O Antigo Testamento, por exemplo, narra a história de José, que interpretou os sonhos do Faraó e previu sete anos de abundância seguidos por sete anos de fome no Egito, salvando assim a nação. Esses relatos reforçam a crença de que os sonhos podem conter mensagens divinas e orientar ações importantes.
No Islão, os sonhos também têm um papel espiritual significativo. Os muçulmanos acreditam que os sonhos podem ser uma forma de revelação divina, e que há três tipos de sonhos: os que vêm de Deus, os que vêm do próprio subconsciente e os que resultam de influências negativas. Sonhos enviados por Deus, conhecidos como “ru’ya”, são considerados premonitórios e podem fornecer orientação moral ou espiritual.
Em muitas tradições orientais, como o Budismo e o Hinduísmo, os sonhos são vistos como uma extensão da prática espiritual. A meditação, que visa a autoobservação e a descoberta interior, pode influenciar os sonhos, tornando-os mais lúcidos ou esclarecedores. No Budismo Tibetano, por exemplo, existe uma prática chamada Yoga do Sonho, onde os praticantes tentam manter a consciência durante o sono para explorar o estado de sonho e usá-lo para alcançar o despertar espiritual.
Essas práticas espirituais mostram que, para muitos, os sonhos são mais do que apenas um fenómeno psicológico ou neurológico – são uma porta para dimensões mais profundas da existência, onde o mistério da vida e da morte pode ser explorado.
Pontes entre mundos
Seja como um reflexo de nossos desejos inconscientes, como um meio de comunicação divina ou como uma simples resposta aos impulsos neurológicos, os sonhos permanecem um enigma fascinante e um território fértil para a exploração humana. Eles conectam-nos a aspetos de nós mesmos que, durante o estado de vigília, permanecem ocultos, e lembram que, no interior da nossa mente, existe um universo vasto e inexplorado, onde fantasia e realidade se entrelaçam.
Foto de Bruce Christianson
Referências bibliográficas
- Hobson, J. Allan; McCarley, Robert. “The Brain as a Dream State Generator: An Activation-Synthesis Hypothesis of the Dream Process“. American Journal of Psychiatry, 1977.
- Freud, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. 1899. (Edição consultada: Imago Editora, 2016).
- Jung, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. 1964. (Edição brasileira: Nova Fronteira, 2016).
- Lamon, Ward Hill. Recollections of Abraham Lincoln, 1847–1865. Chicago: Belford, Clarke & Co., 1895.
- Norton, Roger J. The Dream of Lincoln. The Abraham Lincoln Research Site. Disponível em: https://rogerjnorton.com/Lincoln46.html.
- Brown, Craig. One Two Three Four: The Beatles in Time. HarperCollins, 2020.
- Wehr, Gerhard. Jung: A Biography. Shambhala Publications, 1989.
- Gyatrul Rinpoche. Meditation, Transformation, and Dream Yoga. Snow Lion Publications, 2002.
- Guillaume, Alfred. Islam. Penguin Books, 1990.
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