Lothar Pirc: “O objetivo maior da medicina Ayurveda é criar uma sociedade livre de doenças”

Lothar Pirc fundou em 1992 aquela que é considerada uma das principais clínicas de medicina ayurvédica na Europa, somando milhares de utentes e vários prémios: o Maharishi Ayurveda Health Centre na cidade termal de Bad Ems, na Alemanha. Recentemente, o professor, discípulo de Maharishi Mahesh Yogi – fundador da Meditação Transcendental –, esteve em Portugal. Em entrevista, reflete sobre a medicina Ayurveda e deixa algumas dicas para uma vida mais saudável.

O Professor tem dedicado a vida a estabelecer o Ayurveda como parte integrante dos sistemas de saúde ocidentais. Quais as principais diferenças entre o Ayurveda e a medicina convencional?

No Ayurveda, que significa ciência da vida, não tratamos doenças, mas desequilíbrios nos três biótipos metabólicos por que somos constituídos: Vata, P i tta e Kapha. Falo de desequilíbrios na mente, nas emoções, no comportamento, na dieta, no estilo de vida e até mesmo no ambiente.

O Ayurveda é um sistema milenar, mas enfrentou distorções e negligência ao longo do tempo. Durante quase duzentos anos [entre 1757 e 1947], quando a Índia esteve sob domínio colonial britânico, a sua cultura e medicina tradicional foram ativamente suprimidas. No início da década de 1980, Maharishi Mahesh Yogi [1918-2008], meu professor, desempenhou um papel fundamental na revitalização do Ayurveda na sua forma completa e autêntica. Colaborando com os principais especialistas e famílias tradicionais ayurvédicas da Índia, organizou inúmeras conferências, incentivou pesquisas científicas, promoveu programas de formação em diversos países. Os seus esforços ajudaram a restaurar e consolidar a importância do Ayurveda no mundo contemporâneo. Este sistema é focado na prevenção, no rejuvenescimento, na purificação, no aumento do tempo de vida, na iluminação – isto é, no desenvolvimento total do potencial de uma pessoa. E o seu objetivo maior é criar uma sociedade sem doenças. Trata-se de um objetivo muito ambicioso, mas estou convencido de que se Ayurveda fosse introduzido nas escolas, ensinando os alunos a como comer e a comportar-se de forma correta, poderíamos ir nessa direção.

Não quero criticar a Medicina moderna, porque é necessária, sobretudo quando temos algum acidente ou doença em estado avançado, mas quando alguém tem cancro, um ataque do coração ou uma doença crónica, essas condições foram desenvolvidas durante anos. O Ayurveda reconhece seis etapas no desenvolvimento de uma doença [ver caixa], e a medicina moderna normalmente pode apenas detetar a quinta etapa. Muitas pessoas vão ao médico de família, que em muitos casos não encontra nada, então são encaminhadas para um especialista, que também pode não encontrar. Mas no Ayurveda, nós temos um sistema que se chama Nadi Vijnana, onde podemos, através de diagnóstico pelo pulso, detetar as primeiras etapas da doença.

O diagnóstico pela língua também está instituído no Ayurveda, entre outros métodos. Pode explicitar que cuidados se deve ter nas primeiras etapas de doença?

Considera-se que uma pessoa é saudável quando os doshas estão equilibrados, quando o apetite é forte, os dhatus (tecidos) funcionam normalmente, os malas (resíduos do corpo) estão em equilíbrio, e quando o ser, a mente e os sentidos estão num estado de felicidade. Quando alguém está na primeira ou segunda etapa de doença, deve ir dormir cedo, mudar a dieta, fazer um pouco de Yoga. Na terceira etapa, deve acrescentar meditação, para libertar o stresse, e talvez precise de fitoterapia. Na quarta etapa, deve desintoxicar o corpo. E quando a doença vai na quinta ou sexta etapa, precisamos de medicamentos modernos. Se, por exemplo, existe um tumor, é melhor retirá-lo. Mas também aí o Ayurveda é importante, para cuidar dos efeitos secundários e tratar a causa da doença.

A dieta é muito importante. Diz o Ayurveda que, se temos as ervas certas, mas a dieta errada, as ervas não podem ajudar. E se temos a dieta certa, não precisamos de ervas. Comida orgânica é muito importante.

Uma pessoa é saudável quando os doshas estão equilibrados, quando o apetite é forte, os tecidos funcionam normalmente, os resíduos do corpo estão em equilíbrio, e quando o ser, a mente e os sentidos estão num estado de felicidade.

Fale-nos um pouco sobre Meditação Transcendental.

A Meditação Transcendental é a essência do Yoga. A maioria das pessoas pensa que o Yoga são as posturas [asanas], mas Yoga significa União. O homem comum acede apenas a três estados de consciência – usamos apenas 10% da nossa mente –, mas na verdade temos sete estados de consciência. Foi esse conhecimento que o meu professor, Maharishi Maharishi Yogi, resgatou junto das tradições na Índia.

Quando a mente, habitualmente voltada para o exterior e imersa em pensamentos, se torna mais silenciosa e os seus impulsos se aquietam, surge a experiência da alegria e da felicidade internas, manifestando a união com a alma (Atma).

A Meditação Transcendental é fácil de aprender com professores certificados, seguindo um processo estruturado de sete etapas, cada uma com cerca de hora e meia. A prática consiste em meditar durante 20 minutos, duas vezes por dia. Os seus benefícios podem ser sentidos desde os primeiros dias e acumulam-se ao longo do tempo. Mais de 700 estudos científicos foram realizados em mais de 200 universidades independentes, em 33 países. Um exemplo notável é um estudo de longo prazo que demonstrou que os custos de saúde entre os praticantes diminuíram aproximadamente 50% em comparação com a população em geral.

O Charaka Samhita [texto clássico do Ayurveda] diz que a causa principal de doença é um intelecto errado (Prajñāparādha). O nosso intelecto faz constantemente o erro de nos identificar com o mundo externo – com a nossa conta bancária, com a nossa saúde, com as nossas relações e com os problemas do mundo – mas estamos além disso. Temos tido resultados incríveis com a prática da Meditação Transcendental, que não é difícil, como muitos podem pensar.

Entre as principais valências do Maharishi Ayurveda Health Centre Bad Ems estão as terapias de desintoxicação, chamadas de Panchakarma. Pode explicar-nos em que consistem?

Pancha significa “cinco”; Panchakarma são cinco ações ayurvédicas para desintoxicar o corpo, purificar os canais para que a inteligência interna possa fluir em cada célula e restabelecer a relação entre o corpo e a consciência, que é a fonte da saúde:

Virechana (laxante) – para equilibrar dosha Pitta
Basti (enemas de ervas) – para equilibrar Vata
Nasya (irrigação nasal) – para baixar doshas da zona da cabeça
Rakta Mokshan (sangria) – para purificar o sangue
Vamana (emético) – para equilibrar dosha Kapha

Estas ações incluem terapias preparatórias, como ingestão de ghee, massagem abhyanga, shirodhara, pizzichil, svedana. Num tratamento Panchakarma, resíduos metabólicos, toxinas ambientais e outras são sistematicamente eliminados do corpo, e a alma também se liberta de tensões profundas e stresse. Pessoas que passaram por esse processo sentem-se significativamente mais saudáveis e enérgicas depois de apenas 10 a 14 dias.

Quando alguém está na primeira ou segunda etapa de doença, deve ir dormir cedo, mudar a dieta, fazer um pouco de Yoga. Na terceira etapa, deve acrescentar meditação, para libertar o stresse, e talvez precise de fitoterapia. Na quarta etapa, deve desintoxicar o corpo. E quando a doença vai na quinta ou sexta etapa, precisamos de medicamentos modernos. Mas também aí o Ayurveda é importante, para cuidar dos efeitos secundários e tratar a causa.

Existem estudos que comprovam a efetividade destas terapias?

Sim, temos vários estudos realizados, que atestam que o Panchakarma melhora indicadores de saúde física, o bem-estar, a energia, a vitalidade, o apetite, o sono, as emoções… Também ao nível do colesterol total, da eliminação de toxinas ambientais, da redução da idade biológica. Podemos dizer que quase todas as doenças podem ser tratadas com sucesso, como desordens nervosas, neurológicas, ginecológicas, cardiovasculares, problemas digestivos, metabólicos, doenças respiratórias, alergias, doenças de pele.

No entanto, a indústria farmacêutica não está satisfeita com o crescente interesse da Alemanha pelo Ayurveda e pela medicina natural. Devido a processos movidos pela indústria, a minha clínica foi levada a tribunal quatro vezes. Embora tenha sido absolvido, construir a clínica nem sempre foi fácil.

Professor, para terminar, pode dar-nos algumas dicas ayurvédicas para melhorar a saúde e o bem-estar?

Claro! Eis algumas dicas:

Ir para a cama cedo e acordar antes das 6 da manhã.
Comer apenas quando se está com fome. A refeição principal deve ser o almoço, o jantar é mais leve. Preferir comida fresca e orgânica.
Beber muita água quente – se necessário, filtrada.
Raspar a língua ao acordar, para remover toxinas acumuladas durante a noite (se não tiver raspador, pode usar uma colher).
Fazer uma automassagem diária com óleo (estilo Abhyanga).
Tomar apenas líquidos uma vez por semana.
Se necessário, tomar suplementos alimentares.
Exercitar-se todos os dias ou pelo menos algumas vezes por semana, mas sem exageros – e respirando sempre pelo nariz.

As seis etapas da doença

De acordo com o Ayurveda, uma doença desenvolve-se gradualmente ao longo de seis etapas progressivas. Esse modelo permite identificar desequilíbrios antes que se tornem doenças graves. As seis etapas da doença são:

Acumulação (Sanchaya) – O dosha (Vata, Pitta ou Kapha) começa a acumular-se devido a fatores como dieta inadequada, emoções negativas ou rotina desequilibrada. Neste estágio, há apenas desconfortos leves, como sensação de peso, fadiga ou leve indigestão.
Agravamento (Prakopa) – O dosha acumulado começa a agravar-se, espalhando-se para além do seu local natural. Pode haver sintomas como inchaço, azia ou irritabilidade.
Transbordamento (Prasara) – O dosha começa a transbordar e a circular pelo corpo através dos canais (srotas), alcançando áreas vulneráveis. Surgem sintomas mais intensos, como dores, inflamações ou mudanças no metabolismo.
Deposição (Sthana Samshraya) – O dosha instala-se num órgão ou tecido específico, criando uma predisposição para a doença. É um estágio silencioso, mas com sinais subtis, como dores localizadas ou distúrbios leves nos órgãos afetados.
Manifestação (Vyakti) – A doença manifesta-se claramente, com sintomas evidentes e diagnosticáveis, como gastrite, artrite ou alergias.
Complicação (Bheda) – A doença torna-se crónica ou severa, podendo causar danos estruturais aos tecidos e órgãos. Neste estágio, o tratamento é mais difícil e pode exigir medidas mais intensas.